
Papéis Nebulosos, Conflitos Inevitáveis: O lado negligenciado da Governança de Ecossistemas
No universo dos ecossistemas colaborativos, sejam eles de inovação, digitais ou governamentais, muito se fala sobre inovação, tecnologia e parcerias. Mas há um aspecto frequentemente negligenciado e que pode ser determinante para o sucesso ou fracasso dessas redes: a clareza dos papéis de seus atores.
1. Por que falar de papéis na governança em ecossistemas?
Nos últimos anos, a ideia de “ecossistema” ganhou centralidade nas discussões sobre inovação, políticas públicas e transformação digital. Mais do que um conceito da biologia adaptado ao mundo organizacional, os ecossistemas representam arranjos colaborativos compostos por múltiplos atores interdependentes, com objetivos diversos e complementaridades estratégicas.
Em muitos ecossistemas, coexistem instituições públicas, empresas privadas, universidades, startups, organizações da sociedade civil e cidadãos. Essa multiplicidade de atores torna as interações complexas, dinâmicas e muitas vezes imprevisíveis. Cada organização possui suas próprias lógicas, linguagens, culturas e formas de operar. O que poderia ser uma vantagem em termos de diversidade e inovação, rapidamente se transforma em desafio quando não há uma governança clara.
É nesse ponto que a definição de papéis se torna crítica. Sem clareza sobre quem faz o quê, com que grau de responsabilidade e autonomia, a governança se fragiliza. Projetos se sobrepõem, decisões são travadas, recursos são mal alocados e a confiança entre os participantes se deteriora.
Falar de papéis na governança de ecossistemas é, portanto, falar de um dos pilares que sustentam a colaboração efetiva. Quando cada ator entende sua função, reconhece as atribuições dos demais e atua de forma complementar, a governança deixa de ser um campo de disputa e se transforma em um mecanismo de articulação estratégica, capaz de gerar impacto coletivo com mais consistência e agilidade.
2. O que é governança de ecossistemas? Um olhar pela Teoria dos Papéis
A governança de ecossistemas difere substancialmente dos modelos tradicionais de governança. Enquanto a governança clássica é baseada em estruturas hierárquicas, centralização de poder e controle formal, a governança em rede pressupõe articulação horizontal, interdependência e ação coordenada entre múltiplos atores autônomos.
Em um ecossistema, nenhuma organização atua isoladamente. A criação de valor ocorre por meio de trocas, complementaridades e sinergias entre instituições com missões distintas. Nesse contexto, a governança não é apenas uma estrutura de comando, mas uma prática contínua de negociação, construção de consensos e articulação de interesses. É nesse ambiente que a Teoria dos Papéis oferece uma lente útil para compreender como os atores se posicionam e interagem.
A teoria tem origem nas ciências sociais e foi amplamente desenvolvida por autores como Erving Goffman (1959), que descreveu os papéis sociais como performances moldadas pelas expectativas coletivas, e Ralph Turner (2001), que aprofundou o entendimento sobre como esses papéis são estruturados e negociados nas interações sociais. Segundo Biddle (1986), os papéis funcionam como mecanismos que orientam comportamentos e ajudam a manter a coesão e a previsibilidade dentro dos grupos.
Aplicada à governança de ecossistemas, essa perspectiva da Teoria dos Papéis permite compreender não apenas as funções formais dos atores, mas também as normas de comportamento, os espaços de influência e os compromissos (explícitos ou implícitos) que se formam entre eles. Além disso, contribuições oriundas da sociologia, como as de Callon (1986), reforçam a ideia de que esses papéis são constantemente renegociados, à medida que atores humanos e organizacionais constroem coletivamente significados e distribuem responsabilidades.
Em outras palavras, a governança em ecossistemas não funciona apenas com organogramas ou contratos. Ela exige o reconhecimento de que os papéis exercidos vão além do que está institucionalizado. Eles envolvem liderança, mediação, inovação, execução, monitoramento, financiamento e representação, entre outros.
Para que esse arranjo funcione, é preciso ancorar a governança em alguns princípios fundamentais:
- Distribuição de poder: diferentes atores precisam ter voz ativa, e não apenas ocupar formalmente um espaço.
- Coordenação: é essencial articular ações de forma fluida, mesmo entre instituições com culturas e objetivos distintos.
- Transparência: os processos decisórios e os critérios de atuação devem ser claros e acessíveis.
- Confiança: talvez o ativo mais valioso em qualquer ecossistema, a confiança é construída na coerência entre discurso e prática, e na entrega de resultados consistentes ao longo do tempo.
Dentro desse modelo, os papéis não são fixos, eles evoluem à medida que o ecossistema amadurece. Há papéis mais visíveis, como o do coordenador ou financiador, e papéis menos perceptíveis, mas igualmente essenciais, como o de conector, influenciador ou legitimador. O reconhecimento e a gestão consciente desses papéis são decisivos para o bom funcionamento da governança.
3. A importância da definição clara de papéis
Quando papéis não são bem definidos, é comum ocorrer sobreposição de funções: duas instituições atuam na mesma frente sem coordenação, iniciativas redundantes são lançadas paralelamente e recursos são disputados ou desperdiçados. Ao mesmo tempo, vazios de responsabilidade se formam, atividades importantes ficam sem responsáveis ou são abandonadas por falta de clareza sobre a quem cabem.
A definição clara de papéis permite alinhamento estratégico entre os diferentes atores. Cada organização compreende sua função dentro do todo, contribui com o que tem de mais relevante e evita interferências contraproducentes. Isso facilita o trabalho conjunto, mesmo entre instituições com culturas ou objetivos distintos, promovendo uma atuação mais coordenada.
Outro benefício importante está na tomada de decisão e na alocação de recursos. Quando os papéis são compreendidos, os processos decisórios são mais ágeis, os recursos são distribuídos com maior racionalidade e os resultados podem ser avaliados com critérios consistentes. A governança se torna, assim, um sistema de aprendizado e não apenas de controle.
Assim, a clareza de papéis é muito mais do que uma questão técnica ou burocrática. É uma estratégia fundamental para sustentar ecossistemas resilientes, colaborativos e capazes de gerar impacto público consistente.
4. Exemplos práticos
A ausência de definição clara de papéis em ecossistemas não é uma abstração teórica, mas sim, um problema cotidiano com impactos concretos. Em diversas iniciativas acompanhadas por redes colaborativas, observa-se que a indefinição de responsabilidades gera gargalos operacionais, paralisação de projetos, concorrência desnecessária entre iniciativas e desalinhamento de prioridades.
Um exemplo recorrente está em projetos interinstitucionais que envolvem múltiplas secretarias ou organizações. Quando não há clareza sobre quem lidera, quem executa, quem financia e quem monitora, o projeto pode estagnar. Cada ator espera pelo outro, e decisões fundamentais ficam sem encaminhamento. Em outros casos, instituições diferentes lançam ações sobre o mesmo tema sem coordenação, gerando sobreposição de esforços e até disputas por visibilidade ou recursos.
Por outro lado, experiências bem-sucedidas mostram que a definição de papéis pode ser um diferencial estratégico. Aqui na Linked Data, tivemos a oportunidade de atuar na Governança do Cade, por exemplo, onde conduzimos um diagnóstico do estágio de maturidade em governança de dados da instituição. A partir desse trabalho, identificamos lacunas, propusemos diretrizes e estruturamos dimensões críticas como a definição de papéis e responsabilidades, valor e resultados e colaboração e cultura — fundamentais para uma tomada de decisão orientada por evidências em um órgão que lida com dados sensíveis e estratégicos para a economia brasileira.
Outro caso relevante vem da Estratégia de Governo Digital da Paraíba, onde a Linked Data atuou, em parceria com o Sebrae/PB, na construção de um ecossistema colaborativo e na capacitação de servidores. Desenvolvemos oficinas práticas sobre experiência do usuário, envolvendo universidades, governo federal e lideranças locais. Além disso, coordenamos uma pesquisa inédita de avaliação de conhecimento sobre governo digital entre os servidores estaduais, com o objetivo de mapear competências e orientar políticas públicas mais eficazes e alinhadas à realidade do Estado.
Esses exemplos demonstram que a governança eficaz não nasce espontaneamente. Ela é fruto de processos intencionais de negociação, construção de confiança e pactuação de papéis. Quando bem conduzidos, esses processos criam as bases para ecossistemas mais colaborativos, resilientes e capazes de enfrentar desafios complexos de forma articulada.
5. Papéis em evolução: dinâmicas e adaptabilidade
Ecossistemas não são estruturas estáticas, elas evoluem, se reconfiguram e se adaptam constantemente às mudanças do contexto. Novos atores entram, antigas instituições assumem novas funções, prioridades se transformam. Por isso, a definição de papéis em ecossistemas não pode ser encarada como um exercício pontual, mas sim como um processo contínuo e adaptativo.
A governança que funciona hoje pode não responder às demandas de amanhã. Por isso, é essencial que os arranjos de governança contemplem mecanismos de revisão periódica dos papéis, com escuta ativa, diálogo transparente e abertura para ajustes. Quanto mais participativo for esse processo, maior será o compromisso dos envolvidos com os resultados e mais sólida será a confiança entre os membros do ecossistema.
Ferramentas e métodos estruturados podem apoiar esse trabalho de forma prática. O mapeamento de stakeholders, por exemplo, permite identificar os atores relevantes, seus interesses, graus de influência e potenciais contribuições. Já as matrizes de governança ajudam a visualizar de forma clara quem são os responsáveis por decisões, execução, financiamento, comunicação e monitoramento em cada etapa dos projetos ou políticas.
Outros frameworks, como o modelo RACI (Responsável, Aprovador, Consultado, Informado), têm sido amplamente utilizados para atribuição de responsabilidades em ambientes complexos. Essas ferramentas não substituem o diálogo político e institucional, mas fornecem base técnica e metodológica para construir uma governança mais transparente e ajustável.
Reconhecer que papéis são construções sociais e, portanto, passíveis de negociação e mudança, é um passo fundamental para que a governança de ecossistemas seja, de fato, um instrumento de inovação, e não apenas uma formalidade.
6. Conclusão: papel da liderança e da cultura colaborativa
Ao longo deste artigo, ficou evidente que a definição de papéis é uma peça-chave para o funcionamento de ecossistemas colaborativos. Mas para que esse processo seja contínuo, adaptável e orientado a resultados, ele precisa ser sustentado por dois elementos fundamentais: liderança articuladora e cultura colaborativa.
A figura da liderança, nesse contexto, não deve ser compreendida como um comando centralizador, mas como um orquestrador de redes. Um agente que conecta diferentes instituições, escuta demandas, negocia responsabilidades e garante coerência entre estratégia e ação. Essa liderança é, muitas vezes, distribuída entre diversos atores e é justamente nesse cenário complexo que soluções especializadas de governança entram em cena.
A Linked Data atua exatamente nesse ponto de interseção entre técnica, articulação e estratégia. Com metodologias próprias e tecnologia para dar suporte à governança de ecossistemas, ajudamos organizações públicas e privadas a mapear atores, definir papéis, criar estruturas de decisão e monitorar o desempenho coletivo. Trata-se de uma abordagem que combina inteligência de dados, escuta qualificada e ferramentas colaborativas para fortalecer redes que geram valor público.
Por isso, gestores públicos, lideranças intermediárias e articuladores territoriais devem considerar seriamente o investimento em ferramentas e metodologias que ajudem a estruturar sua governança. Em vez de depender da informalidade ou de relações pessoais, é possível criar sistemas robustos, adaptáveis e orientados por evidências, como os que a Linked Data implementa em diversas regiões do país e para diferentes pautas como a de governo digital e governança de dados.
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Referências
Biddle, B. J. (1986). Recent developments in role theory. Annual Review of Sociology, 12, 67–92.
Callon, M. (1986). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St. Brieuc Bay. In J. Law (Ed.), Power, action and belief: A new sociology of knowledge? (pp. 196–233). Routledge.
Goffman, E. (1959). The presentation of self in everyday life. Anchor Books.
Turner, R. H. (2001). Role theory. In J. H. Turner (Ed.), Handbook of sociological theory (pp. 233–254). Springer.