

O Brasil vive um momento estratégico para acelerar a transformação digital na gestão pública. Em junho de 2024, o país deu um passo importante rumo à consolidação da cultura de governo digital com a publicação da nova Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD), elaborada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A publicação ENGD 2024-2027, representa um marco importante na construção de uma cultura digital no setor público brasileiro.
Mas, afinal, como essa estratégia se materializa nos estados e, principalmente, nos municípios, que enfrentam realidades tão distintas em termos de recursos, capacidades técnicas e desafios estruturais? Este é um debate urgente, que ganha cada vez mais relevância diante da necessidade de tornar os serviços públicos mais eficientes, acessíveis e alinhados às expectativas dos cidadãos.
A grande força da ENGD está no seu modelo colaborativo de construção. Foram mais de 90 municípios, 26 estados, além de especialistas nacionais e internacionais, representantes do setor privado e da sociedade civil envolvidos em sua elaboração. Esse processo de cocriação foi essencial para garantir que as diretrizes da estratégia estejam alinhadas às realidades locais, reconhecendo que não existe uma solução única para um país tão diverso quanto o Brasil.
A ENGD funciona como um guia orientador, que oferece diretrizes, marcos normativos, recomendações e boas práticas. Ela não impõe obrigações, mas propõe caminhos para que cada ente federativo — estado ou município — possa construir sua própria jornada de transformação digital, sempre alinhada a um objetivo comum: tornar o serviço público mais simples, acessível, eficiente e inclusivo para toda a população.
Apesar dos avanços, os números mostram que o desafio é enorme. Atualmente, apenas 11 estados possuem uma estratégia formal de governo digital. No nível municipal, a situação é ainda mais crítica: cerca de 72% das prefeituras não possuem sequer um plano estratégico de tecnologia da informação (TI). Isso significa que grande parte das decisões sobre digitalização são tomadas de forma isolada, sem uma visão de longo prazo, sem integração e, muitas vezes, sem alinhamento com as reais necessidades da população.
Por outro lado, há sinais claros de progresso. O login único do governo federal, o GOV.BR , já reúne mais de 160 milhões de usuários, facilitando o acesso a milhares de serviços. Entretanto, quase metade das prefeituras ainda utiliza sistemas próprios de autenticação, criando barreiras para uma experiência mais fluida e integrada do cidadão.
Na área de segurança cibernética, o cenário também exige atenção. Cerca de 68% dos municípios não possuem um plano formal de segurança da informação, e 64% não têm um encarregado responsável pela aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Isso não apenas fragiliza a proteção dos dados dos cidadãos, como também limita a capacidade dos governos locais de inovar com segurança.
Não há transformação digital sem governança. Este é, sem dúvida, um dos principais gargalos dos estados e municípios brasileiros. A ausência de planos estratégicos, de normativas específicas, de orçamentos destinados à transformação digital e de equipes capacitadas para liderar esse processo gera um ciclo de paralisia.
Superar esse desafio começa pela institucionalização da transformação digital como uma política pública permanente. Isso significa criar estruturas de governança claras — como comitês, conselhos ou secretarias dedicadas —, com atribuições definidas, orçamentos específicos e autonomia para conduzir projetos de inovação e digitalização.
Muito se fala em tecnologia, mas o maior motor da transformação digital é, sem dúvida, o desenvolvimento de pessoas. Os municípios e estados enfrentam um grande desafio de déficit de profissionais qualificados, especialmente em áreas como dados, inteligência artificial, segurança da informação e desenvolvimento de soluções digitais.
Além da formação técnica, é fundamental fomentar uma mudança de cultura dentro da administração pública, promovendo valores como colaboração, inovação, abertura ao erro, aprendizagem contínua e foco na experiência do cidadão. Isso exige programas estruturados de capacitação, trilhas formativas, parcerias com universidades, escolas de governo e instituições do terceiro setor.
Digitalizar não significa simplesmente colocar um formulário na internet. É preciso repensar os processos, eliminar burocracias desnecessárias e desenhar jornadas que façam sentido para quem utiliza os serviços.
Atualmente, existe um grande espaço para melhoria na forma como os serviços públicos são oferecidos. Muitos ainda estão desconectados, exigem deslocamentos presenciais ou são difíceis de utilizar. Por isso, a estratégia de transformação digital precisa estar centrada na experiência do cidadão, oferecendo serviços simples, rápidos, acessíveis em múltiplos canais e pensados para diferentes perfis da população.
Um dos pilares para melhorar a experiência dos serviços públicos digitais é garantir uma identidade digital única, segura e confiável. O GOV.BR cumpre esse papel no âmbito federal, mas há uma fragmentação grande no nível estadual e municipal.
Avançar na adoção do login único não é apenas uma questão técnica, mas uma decisão estratégica que permite integrar serviços, facilitar o acesso dos cidadãos e gerar dados que ajudam a melhorar continuamente os serviços prestados.
Sem segurança, não há transformação digital sustentável. O alto percentual de municípios sem planos de segurança da informação ou sem responsáveis pela LGPD expõe governos e cidadãos a riscos significativos.
A construção de uma cultura de segurança da informação deve ser uma prioridade. Isso inclui desde a implementação de normas básicas, como políticas de backup e gestão de acessos, até investimentos em infraestrutura cibernética, capacitação de equipes e adoção de protocolos de resposta a incidentes.
A capacidade dos diferentes órgãos e esferas de governo se comunicarem digitalmente — a chamada interoperabilidade — é um dos grandes desafios e, ao mesmo tempo, uma das maiores oportunidades da transformação digital.
Sem interoperabilidade, os dados ficam isolados em silos, obrigando o cidadão a fornecer as mesmas informações várias vezes para diferentes órgãos. Com ela, é possível simplificar processos, reduzir custos, aumentar a transparência e gerar valor tanto para a gestão pública quanto para o cidadão.
Além disso, fortalecer a governança de dados permite não só melhorar os serviços públicos, mas também fomentar uma nova economia baseada no uso inteligente e ético dos dados, impulsionando inovação, desenvolvimento econômico e inclusão social.
Os ganhos da transformação digital são concretos. Segundo o próprio Ministério da Gestão e da Inovação, o Brasil já economiza mais de R$ 5 bilhões por ano com serviços digitais. Isso representa menos tempo gasto pelo cidadão, menos processos manuais, menos papel, mais agilidade e mais transparência.
Mas para ampliar esses ganhos, é necessário adotar ferramentas e metodologias que permitam revisar, redesenhar e automatizar processos internos. Tecnologias como automação robótica de processos (RPA), inteligência artificial e análise de dados já estão disponíveis e podem ser aplicadas inclusive em municípios de menor porte, desde que de forma colaborativa e planejada.
De nada adianta digitalizar serviços se parte significativa da população não tem acesso à internet ou não possui habilidades digitais para utilizá-los. Este é um ponto crítico, especialmente em regiões mais afastadas ou em municípios de menor porte.
A solução passa pela formação de consórcios intermunicipais, que permitem ganhos de escala nos investimentos em infraestrutura tecnológica, redes de dados, equipamentos e capacitação. Além disso, políticas de inclusão digital devem ser tratadas como prioridade, garantindo que ninguém fique para trás na transformação digital.
A transformação digital também abre espaço para um novo modelo de desenvolvimento econômico local, baseado na economia de dados, na inovação aberta e na parceria com startups e empresas GovTech.
No entanto, ainda existe uma dificuldade dos governos em escalar soluções inovadoras e em aprimorar os processos de compras públicas de inovação. Melhorar esse ambiente regulatório e fomentar hubs de inovação no setor público são estratégias fundamentais para acelerar essa agenda, gerar empregos qualificados e promover desenvolvimento econômico sustentável.
Quase todos os municípios brasileiros já possuem portais de transparência, mas poucos vão além da publicação de dados. Ferramentas de participação digital, como consultas públicas, audiências online, votações e fóruns digitais, ainda são pouco exploradas.
A transformação digital oferece uma oportunidade concreta para fortalecer a democracia, ampliar os canais de participação social, envolver a população nas decisões públicas e construir soluções mais alinhadas às reais necessidades dos territórios.
O que a ENGD propõe, em última análise, é a construção de um caminho coletivo. Não existe transformação digital de forma isolada. Ela exige articulação entre os diferentes níveis de governo, parcerias com o setor privado, a academia e a sociedade civil, e, sobretudo, um compromisso claro dos gestores públicos com a construção de um Estado mais ágil, inclusivo e centrado no cidadão.
Cada município, cada estado, pode — e deve — encontrar seu próprio caminho dentro desse grande mapa que a Estratégia Nacional de Governo Digital oferece. Mais do que uma obrigação, trata-se de uma oportunidade histórica de transformar o serviço público em uma verdadeira plataforma de desenvolvimento social, econômico e democrático para o país.
E você, gestor público, já fez a estratégia de governo digital do seu Estado ou município?
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